- As origens mitológicas do lobisomem
- O culto dos guerreiros
- Licaão, rei da Arcádia
- Lobisomens na época medieval
- Como se transformar em um lobisomem
- O lobisomem é o bode expiatório girardiano
- A interpretação moderna do lobisomem
- Cuidado com os uivos
Na segunda parte das Criaturas da Noite, vamos analisar os mitos e as lendas que rodeiam o Lobisomem. Desde as origens mito-históricas à transformação psicológica e ao subtexto social, passando pela interpretação moderna das tradições folclóricas.
A crença de que as fases da Lua representam o círculo da vida, comandando tanto o homem como a natureza, é muito comum entre as religiões antigas, que programavam as suas celebrações e festivais em função delas.
A Lua influencia as marés, a migração dos animais, o início e o fim das estações, etc.
Para estas civilizações, que dependiam da natureza para se alimentarem e sobreviverem, era algo de muito importante.
Mas sabia que há provas que sugerem que as luas cheias nos influenciam de facto a nível emocional e físico?
Há picos de acidentes de viação, homicídios e acontecimentos estranhos em geral. Afinal, o termo "lunação" vem do ciclo lunar. Aristóteles documentou este fenómeno, juntamente com muitos filósofos ao longo dos anos.
Já reparou como isso o afecta a si?
Pessoalmente, fico mais irritado, mais emotivo e, em alguns casos, mais enérgico! Um rubor, uma sensação de excitação. Obviamente, pode ser uma coincidência... mas pergunto-me se não será uma das razões pelas quais o mito do lobisomem estava ligado ao satélite de prata.
De facto, é uma das lendas mais populares, que persiste há milhares de anos em muitas tradições diferentes.
Porquê?
Bem, estás prestes a descobrir!
As origens mitológicas do lobisomem
Apesar de encontrarmos o mito do lobisomem em muitas civilizações diferentes, é uma história viva, que respira e se transforma de acordo com as complexidades culturais locais.
Mas há uma narrativa subjacente que se mantém inalterada.
O culto dos guerreiros
A ideia de assumir as qualidades e os pontos fortes de um animal é persistente em todas as culturas guerreiras.
A seita mais famosa, os "berzerkers" ou peles de urso, eram guerreiros ferozes que combatiam em estado de transe, sem se preocuparem com as suas próprias vidas. Do mesmo modo, os Úlfhéðnar (casacos de lobo) vestiam peles de lobo para encarnar as qualidades do animal.
Na Grécia antiga, a licantropia - de lycos (lobo) e anthropos (homem) - era considerada como um ritual de iniciação ao culto dos guerreiros; a criação de "homens-lobo" a partir de homens normais.
Tratava-se mais de um procedimento totémico do que de uma metamorfose, mas mais tarde tornou-se numa transformação simbólica que impulsionou ainda mais o mito do lobisomem.
Licaão, rei da Arcádia
Um dos mitos mais antigos sobre o lobisomem vem da Grécia antiga.
Lycaon ("lykos", lobo) queria pôr à prova o todo-poderoso Zeus. Não acreditava que o mais poderoso dos Olímpicos fosse omnisciente, pelo que tentou enganá-lo - tal como Prometeu.
O rei sacrificou o seu filho, Nyctimus, e serviu a sua carne assada durante um banquete.
Furioso, Zeus matou a prole de Lycaon e transformou-o num lobo, ressuscitando também Nyctimus.
Esta história é uma crítica cultural aos costumes e tradições bárbaras dos Arcadianos, supostamente em nome de Zeus.
A transformação de Lycaon em besta é a condenação simbólica destas práticas vis, a ostracização daqueles que são incivilizados. Este é um tema importante que se repete uma e outra vez no mito do lobisomem. Falaremos mais sobre isto num minuto.
Lobisomens na Grécia Antiga
Heródoto escreve sobre os Neuri, uma tribo que se transformava em lobos durante alguns dias por ano.
À semelhança da história de Lycaon, Pausânias fala de um homem que se transformou em lobo depois de ter provado a carne humana de um sacrifício a Zeus.
A Arcádia, uma região perto do sul da Grécia, está repleta de histórias de lobos.
Homens que vagueiam pelas florestas como lobos, uma tradição em que um homem se junta à alcateia durante 9 anos, e se conseguir não provar carne humana, volta ao normal.
Mas foram os romanos e os primeiros cristãos que influenciaram a forma como vemos os lobisomens e " in lupum fuisse mutatum" como uma maldição, associada à lua cheia e ao imaginário meio-humano meio-lobo.
Lobisomens na época medieval
É interessante como as crenças folclóricas podem saturar a vida quotidiana das pessoas comuns. Há tantos casos documentados de ataques de lobisomens que, se não soubéssemos, acreditaríamos mesmo que eram reais!
Vemos historiadores, juristas, estadistas a escreverem estes rumores como um "facto conhecido", prescrevendo mesmo avisos e características-chave a que se deve estar atento. A linha que separa as outras criaturas da noite dos lobisomens torna-se mais ténue à medida que nos embrenhamos no continente europeu, mas a "transformação" continua a ser um padrão.
O ponto-chave é que nenhum homem tem a capacidade inata de se transformar num animal, seja ele um lobo, uma cobra ou um gato, sem a intervenção do divino.
Assim, nesse contexto, os lobisomens foram amaldiçoados ou punidos pelos seus actos ilícitos e, por essa razão, devem ser processados. É por isso que, durante o frenesim da caça às bruxas, os lobisomens foram perseguidos em massa.
Como se transformar em um lobisomem
Muito se tem escrito sobre a metamorfose do homem em lobo.
Mas o imaginário antropomórfico do lobo bípede e humano é muito recente. Originalmente, como já referi, a transformação consistia em tornar-se um animal e não um meio-humano, se é que isso faz sentido.
Dito isto, é durante a época medieval que se obtêm mais informações sobre a fisionomia do lobisomem.
Quando estão em forma humana:
- As sobrancelhas encontram-se
- Muito peludo
- As feridas expõem o pelo sob a pele
- Os traumas curam-se excecionalmente bem
- Unhas curvas
- Passo esquisito e oscilante
Quando estão em forma de lobo:
- Falta-lhes a cauda - também uma caraterística típica das bruxas quando se transformam em animais)
- Consegue andar com três pés e fingir que o quarto é a cauda
- Pode falar em linguagem humana
Os historiadores descrevem-no como "sair de um estado de transe".
Repara nas semelhanças com os cultos de guerreiros e na forma como os lutadores entravam em frenesim quando combatiam, quer se tratasse dos berzerkers ou dos wolf-coats?
Outro aspeto a ter em conta são os rituais extáticos que as bruxas utilizavam no seu ofício.
Tornar-se o lobo
Nos tempos pré-históricos, tornar-se lobo era o resultado de um castigo divino; mais tarde, com o cristianismo, a licantropia foi associada a Satanás, bruxas, familiares e rituais profanos.
Beber certas poções e expor-se ao luar eram também formas possíveis de transmutar o seu corpo.
(Nota: Ao pesquisar para este blogue, encontrei uma anedota interessante: Thiess de Kaltenbrun afirmava que era um "Cão de Deus". Transformava-se em lobisomem três vezes por ano e viajava para o Inferno, lutando contra o Diabo e as suas bruxas pelos cereais que tinham roubado. Foi castigado pelas suas crenças. Acho fascinante que, mesmo perante a tortura, nunca tenha mudado de opinião!)
Maldição e doença
Verá que muitas das crenças do folclore estão ligadas ao desejo humano de explicar o mundo através de histórias, mitos e sonhos.
Os trovões são Zeus, o mar é Poseidon, o sono é Hypnos, as doenças, as crises, os perigos e outras catástrofes são personificados.
Neste caso, o lobisomem pode ter sido uma forma de racionalizar condições médicas legítimas como o Síndrome de Down, a psicose, a raiva e a hipertricose.
Outra teoria é que o lobisomem representa o serial killer, o assassino, que, na ausência de meios modernos de resolução de crimes, poderia causar estragos em pequenas comunidades.
Seja qual for o caso, o facto é que estas pessoas foram excluídas, rejeitadas pela sociedade, o que me leva a...
O lobisomem é o bode expiatório girardiano
Já mencionei algumas vezes o conceito de Bode Expiatório de Girard, a ovelha negra.
No contexto da Jornada do Herói e da sua mitologia pessoal, representa o ponto da história em que as pessoas que salvou se viram contra si. Quando o perigo imediato é derrotado, as pessoas precisam de outro espaço para colocar os seus medos e defeitos.
O lobisomem é outro monstro. Precisamos das presas, dos uivos e dos dentes afiados para inserir qualquer irracionalidade e superstição que tenhamos sobre o mundo. Mais importante ainda, precisamos de uma forma de racionalizar a injustiça e o sofrimento que existem no nosso mundo.
Por isso, fingimos que o "mal" se esconde de formas muito óbvias e exageradas.
O meio-humano, meio-lobo, a acumulação colectiva de pecado, arrogância, violência e destruição é expulso, ostracizado da comunidade, coberto de alcatrão e pele de lobo.
Desta forma, estamos a limpar as nossas pequenas comunidades - à semelhança dos rituais de dramatização do Halloween.
A interpretação moderna do lobisomem
À medida que nos aproximamos da história moderna, o lobisomem está imbuído da essência melodramática do romantismo do século XIX.
Tal como o vampiro sedento de sangue, o lobo torna-se refinado, culto, um homem de paixão.
Em vez de um monstro feio e assustador, ele é agora uma alma atormentada, que sofre de uma maldição geracional ou da malevolência de uma bruxa.
O elemento de sacrifício entra em jogo: vemos cenas em que o doente tenta resistir à vontade de se transformar ou de se aprisionar para não fazer mal aos outros.
Esta metamorfose acabou por ganhar contornos sociopolíticos, sublinhando, em muitos casos, a queda da classe aristocrática no final do século XIX, e a licantropia acabou por se tornar uma aflição da classe operária para exprimir as ansiedades da burguesia, ameaçada pela ascensão dos movimentos socialistas.
No entanto, nas interpretações mais recentes do mito, o lobisomem é o protetor ou a antítese, o antagonista, de outras forças subversivas demoníacas.
Cuidado com os uivos
Falei muito sobre o conceito abstrato de licantropia, as lendas e a superstição folclórica.
Mas vale a pena mencionar que a mitologia do lobisomem está enraizada num perigo real e tangível: os lobos!
Os lobos eram um medo legítimo que as pessoas tinham até há muito pouco tempo. Na verdade, era um incómodo diário, especialmente para aqueles que criavam gado.
Os ataques de lobos são raros hoje em dia, mas continuam a acontecer. Penso que as pessoas subestimam a ferocidade e a força do animal e, quando o encontram, ficam chocadas.
Na ausência de armas, estamos em desvantagem. E assim nasce o lobisomem!
P.S. O que pensa que o lobisomem representa? Concorda com a minha avaliação do bode expiatório Girardiano?